Última alteração: 2021-04-29
Resumo
Num notável texto de síntese publicado em 1966, no qual se debruçou sobre tensões entre o antigo e o novo na teoria musical medieval e renascentista, o musicólogo Edward E. Lowinsky afirmou a intencionalidade na escolha da ilustração da letra capitular M inicial do tratado Istituioni Harmoniche, de Gioseffo Zarlino, de 1558. A miniatura que orna a inicial da palavra Musica retrata o sátiro Marsias a ponto de ser esfolado por Apolo. Ela significaria uma alusão, por parte de Zarlino, a Nicola Vicentino, em cujo tratado L’Antica Musica Ridotta alla Moderna Prattica, publicado três anos antes, comparece igualmente uma capitular ilustrada com o mesmo tema abrindo o primeiro capítulo. O mito da punição de Marsias que, tendo desafiado Apolo em duelo musical, perde e é condenado, teria servido a Zarlino, sustenta Lowinsky, como referência à sua oposição teórica com Vicentino: de um lado a posição apolínea, judiciosa e moderada de Zarlino, vencedora da contenda, e de outro, a húbris, o excesso condenável de Vicentino. A leitura de Lowinsky é convincente e sedutora, sobretudo levando-se em conta a natureza telescópica da hipotética referência: o uso anterior de capitular semelhante por Vicentino teria sido, por sua vez, uma evocação do episódio de sua disputa teórica com Vicente Lusitano, ocorrido na corte dos Este, em 1551. A interpretação convida irresistivelmente à tentativa de explorar demais sentidos eventualmente presentes no programa iconográfico do restante do tratado de Zarlino que, editado provavelmente por seus próprios cuidados, constitui talvez o mais referencial escrito teórico de seu tempo. Diversos problemas se colocam, no entanto, que dizem respeito às práticas editoriais da época, e que suscitam dúvidas quanto à escolha deliberada ou não das miniaturas que ilustram as letras capitulares. Buscaremos levantar os problemas e variáveis envolvidos neste tipo de pesquisa iconográfica, a partir do exemplo do tratado de Gioseffo Zarlino.