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O ato e o entreato: as vanguardas no livro “História da Música no Brasil” de Vasco Mariz
Fernando de Oliveira Magre

Última alteração: 2023-10-24

Resumo


O livro “História da Música no Brasil” de Vasco Mariz, publicado em 1981 e com sucessivas reedições (8 ao total), tornou-se referência na historiografia da música brasileira, como demonstra sua presença quase obrigatória nas ementas de disciplinas de história da música nos cursos de graduação em música ao redor do país. Através desta obra panorâmica, para o bem ou para o mal, Mariz estabeleceu uma série de discursos a respeito da música brasileira que até a atualidade vêm sendo reproduzidos, mesmo apesar dos esforços de pesquisas musicológicas que buscam realizar leituras mais complexas das práticas musicais no Brasil. Neste trabalho, pretendemos demonstrar como os discursos de Mariz a respeito da música brasileira a partir da segunda metade do século XX contribuíram para reforçar a hegemonia do nacionalismo musical sobre a vanguarda e como seus impactos são sentidos até a atualidade.

Mariz conta que o livro surgiu de uma encomenda feita por Ênio Silveira, diretor-presidente da Editora Civilização Brasileira. Em suas palavras, o objetivo era uma leitura que atendesse tanto à pesquisa especializada quanto ao grande público, que viesse suprir a ausência de obras do tipo. Vasco Mariz destaca que Silveira o escolheu para a missão porque o considerava isento das disputas de grupos, uma vez que residia fora do Brasil havia muitos anos, atuando como diplomata no exterior, de modo que estaria em posição privilegiada para apreciar o panorama musical “sem ufanismos nem patriotadas” (MARIZ, 1981, p. 15). Ainda no prefácio, Mariz deixa clara sua intenção em estabelecer quais seriam os nomes dignos de figurar na História (com letra maiúscula), algo reiterado ao longo de todo o texto, o que demonstra um entendimento ainda tradicional sobre o fazer historiográfico, já questionado pelo menos desde o estabelecimento da Escola dos Annales na França. Acerca desse trabalho, Vasco Mariz aponta que julgou melhor eliminar “nomes menores para não sobrecarregar o leitor médio”, arrematando mais adiante: “acho que a história da nossa música não deve ser uma relação de ‘todos’ os brasileiros que fizeram música e sim apenas de aqueles que realmente deixaram sua marca permanente, por uma razão ou outra” (MARIZ, 1981, p. 16).

A primeira edição da obra estrutura-se em 16 capítulos, ganhando novas partes nas edições subsequentes. Inicia com a “música no tempo da colônia”, passando pela música no tempo do Império e chegando à virada do século XIX para o século XX com três compositores de formação europeia: Miguéz, Vélasquez e Oswald. A partir do século XX, Mariz organiza toda sua narrativa tendo o Nacionalismo como eixo. O capítulo 7 fala de “precursores do nacionalismo musical” destacando nomes como Brasílio Itiberê da Cunha e Alberto Nepomuceno, entre outros; entre os capítulos 8 e 12 determina 3 gerações nacionalistas, sendo a primeira formada por Villa-Lobos, a quem dá destaque isolado, a segunda formada por Lorenzo Fernandez e Frutuoso Viana entre outros, tendo Francisco Mignone um capítulo só para si, e a terceira geração formada por José Siqueira, Radamés Gnatalli, entre outros; Camargo Guarnieri igualmente ganha um capítulo inteiramente dedicado à sua obra. No capítulo 13, “entreato dodecafônico: H. J. Koellreutter e o Grupo Música Viva”, dedica não mais que 4 páginas à atuação do referido grupo e de seu mentor. Cabe observar que Mariz considera o Movimento Música Viva, que em sua existência conturbada durou mais de 10 anos, como um “entreato”, diminuindo-lhe a importância em sua narrativa. Do fim do referido grupo à publicação do livro, passaram-se quase 30 anos, portanto, espaço de tempo suficiente para que se pudesse levantar maiores fontes sobre o movimento e dimensionar sua importância no decurso da música no Brasil. A noção de um “entreato”, seguido de um capítulo denominado “Primeira geração pós-nacionalista”, deixa patente o entendimento de Mariz sobre o nacionalismo como o “ato principal”. Em sua última edição (MARIZ, 2012), Koellreutter ganha maior espaço a partir de informações que Mariz buscou no trabalho de Carlos Kater (2001).

No capítulo 14 da primeira edição, Mariz estabelece uma primeira geração pós-nacionalista com a presença de nomes como Guerra Peixe e Osvaldo Lacerda, entre outros, e nos dois capítulos seguintes determina duas gerações independentes, a primeira formada por Claudio Santoro, Edino Krieger, entre outros, e a segunda por Marlos Nobre e Almeida Prado. Por fim, o último capítulo é dedicado aos “outros valores novos”, em que figuram Gilberto Mendes, Jorge Antunes, Lindembergue Cardoso, entre outros. Todo o discurso de Vasco Mariz está em torno de uma “imortalização” de gênios e da criação de um cânone na música brasileira. Ao falar sobre os compositores contemporâneos, aos quais ele chama de “outros valores novos”, Mariz ressalta que estes “ainda estão longe de ser incorporados à história da música brasileira”, mas que “são promessas risonhas e devemos encorajá-los” (MARIZ, 1981, p. 302, grifo do autor).

O estabelecimento do Movimento Música Viva como mero entreato dentro do ato principal – o nacionalismo – e a simplificada descrição enciclopédica de compositores posteriores à década de 1960, explicita a atenção de Mariz voltada ao Nacionalismo como a prática mais relevante da música de concerto brasileira. Sua abordagem contribui para o apagamento das práticas de música experimental que floresceram e foram decisivas para a formação da música contemporânea brasileira. Cabe ressaltar que, no mesmo ano, José Maria Neves publicou o livro Música Contemporânea Brasileira, a partir de sua pesquisa de doutorado realizada na Sorbonne sob orientação de Jacques Chailley e Luiz Heitor Corrêa de Azevedo, em que propõe agrupamentos por afinidades estéticas e oferece uma leitura mais generosa da música de vanguarda brasileira, fazendo o caminho oposto ao de Mariz e deixando o nacionalismo em segundo plano. Não se trata, evidentemente, de descartar o esforço de Mariz, afinal, entendemos que o trabalho é fruto de seu tempo e de sua orientação ideológica, assim como qualquer obra historiográfica. Todavia, passados mais de 40 anos da primeira edição do livro, que permanece sendo utilizado de modo acrítico, cabe uma reavaliação de seus discursos e, sobretudo, compreender seu impacto no estabelecimento de algumas práticas musicais e, por outro lado, no apagamento de outras. A História da Música no Brasil de Vasco Mariz é, no máximo, uma história de algumas músicas no Brasil.

 

Referências

BURKE, Peter. A escola dos Annales 1929-1989: a Revolução Francesa da historiografia. 2 ed. São Paulo: Editora Unesp, 2011.

 

KATER, Carlos. Música viva e H.J. Koellreutter: movimentos em direção à modernidade. São Paulo: Musa Editora, 2001.

 

MARIZ, Vasco. História da música no Brasil. 1 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.

 

______. História da música no Brasil. 8 ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2012.

 

NEVES, José Maria. Música contemporânea brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2008.


Palavras-chave


Musicologia; Música brasileira; Música contemporânea; História da música; Vanguarda