Visão Geral

Na tradição historiográfica brasileira musical há um corpo de textos, as Histórias da Música Brasileira/no Brasil, que historicizam as práticas, contextos sociais, instituições e agentes da cena musical nacional, caracterizadas por um não rompimento com paradigmas das Histórias Ocidentais da Música. No entanto, destas Histórias da Música, como a brasileira, além dos fatos positivos, extraem-se particularidades constituídas não só pelas idiossincrasias locais, mas sobretudo em como estas se relacionam com os projetos civilizatórios expondo-as a relações de dependência a plataformas epistemológicas assimiladas nos alinhamentos Norte-Sul da Ocidentalidade. Desta forma, constroem-se os caminhos da patrimonialização de bens culturais através da organização de acervos e a legitimação de documentos históricos, de forma muito próxima ao paradigma historiográfico do dito Antigo Regime anterior ao advento da Escola dos Anais. O resultado dessa postura positivista foi uma prática historicista que mal se libertou da ideia de discutir a música no Brasil a partir de um cânone decorrente das grandes personalidades e de suas obras.

Porém, além da formação do cânone há o que não é sistematizado, ou seja, os processos de apagamentos e memoricídios nos quais se projetam as hegemonias discursivas da sociedade dominante. Em síntese, é neste espaço entre o dito e o não dito que as estruturas enunciativas do historiografar passam a constituir e a definir a territorialidade da nossa musicologia, incluindo o nosso lugar no sistema-mundo. Para tanto, perscrutar a musicologia na percepção dos movimentos hegemônicos, assim como dos movimentos “esquecidos” ou “velados” torna-se um exercício cíclico. Este compromisso requer-nos confrontar a historiografia na percepção dos discursos dominantes, mas também compreender as novas epistemologias que refletem sobre a cena musical a partir das territorialidades que emergem de nossa realidade geográfica-cultural de profunda diversidade, inclusive as performatividades e corporalidades não normativas, descolonizadas dos próprios paradigmas usados tradicionalmente em uma musicologia pouco atenta a práticas cotidianas e suas realidades discretas. Neste campo, devemos considerar questões contemporâneas que rompam a cadeia de um locus elaborativo das dominâncias, assim como dos métodos de investigação e divulgação de nossas pesquisas. É um ambiente para pensar os lugares silenciados ou como a música se dá nas territorialidades informacionais que mudaram, nas últimas décadas, os padrões de produção, circulação, escuta e consumo da música. Da mesma forma, é um espaço para equacionar as questões identitárias, no sentido de melhor posicionar a musicologia para dialogar com as demandas de expressão de gênero, étnico-raciais e condições socioeconômicas, tanto artísticas como de engajamento sociopolítico.

Desafia-se assim a uma prática musicológica que se imponha uma renovação de seus enfoques de forma crítica e radical, inclusive a não interdição da criação e performance como formas de problematização da cena musical, emancipando o objeto musical da mediação escrita. Diante disso, nesta edição convidamos a comunidade estudiosa da música a pensar a historiografia musical brasileira numa perspectiva de suas hegemonias e contra-hegemonias, propondo discutir os modelos e o pensamento historiográfico adotado na produção de discursos locais, regionais e nacionais; dos métodos e entrelaçamentos interdisciplinares; dos impactos dos ambientes de escuta atuais; dos processos críticos numa era de realidades ampliadas e dissolução da autoridade acadêmica; das novas epistemologias de pesquisa; e, o papel do musicólogo neste processo, no qual a construção de narrativas historiográficas demandam atenção às pressões ideológicas e/ou filosófico-estruturais do presente. Por fim, pensar o fazer musicológico no que tange os planos de profissionalização na superação de modelos, e como exige acuidade crítica e posicionamento ético diante dos desafios contemporâneos.

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In Brazilian music historiographic tradition there is a body of texts, the Histories of Brazilian Music or Music In Brazil, which historicize the practices, social contexts, institutions, and agents of national music scenes, characterized by a non-disruption from paradigms of western music histories. However, from these Music Histories, such as the Brazilian one, in addition to the positive facts, one extracts particularities constituted not only by local idiosyncrasies but, above all, in how these relate to the civilizing projects exposing them to relations of dependency to epistemological platforms assimilated in North-South alignments within Westernism. Thus, the paths to the patrimonialization of cultural goods are constructed through the organization of collections and legitimation of historical documents, closely assimilated to the historiographical paradigm of the so-called Ancien Regime prior to the advent of the École des Annales. The result of this positivist stance was a historicizing practice that barely freed itself from the idea of discussing music in Brazil from a canon stemming from the great personalities and their works.

However, in addition to the formation of the canon, there is what is not systematized, i.e., the processes of erasures and memoricides in which the discursive hegemonies of the dominant society are projected. In short, it is within this space between the said and the unsaid that the enunciative structures of historiographical practice begin to constitute and define the territoriality of our musicology, including our place in the world-system. In so exploring musicology, perceptive to hegemonic movements as well as to “forgotten” or “veiled” movements, becomes a cyclical exercise. This commitment requires us to confront historiography in the perception of dominant discourses, but also to understand new epistemologies that consider the territorialities of musical scenes emerging from our profoundly diverse geographical-cultural reality, including the non-normative performances and corporealities, decolonized from paradigms traditionally used in a musicology less attentive to everyday practices and their discrete realities. In this field, we should consider contemporary issues that disrupt the chain of an elaborative locus of dominance, as well as investigative methods and the dissemination of our research. It is an environment for thinking about the silenced places or how music takes place in informational territorialities that have changed, in recent decades, the patterns of music production, circulation, listening and consumption. Likewise, it is a space to equate identity issues, in the sense of better positioning musicology to dialogue with the demands of gender expression, ethnic-racial and socioeconomic conditions, both artistic and of sociopolitical engagement.

One thus challenges a musicological practice that imposes itself on the renewal of its focuses critically and radically, including the non-interdiction of creation and performance as forms of problematization of the musical scene, emancipating the musical object from written mediation. Accordingly, in this edition we invite the music-studious community to think about Brazilian musical historiography from a perspective of its hegemonies and counter-hegemonies, proposing to discuss: models and historiographic thinking adopted in the production of local, regional and national discourses; interdisciplinary methods and its intertwinements; the impacts of today's listening environments; critical processes in an era of expanded realities and dissolution of academic authority; new research epistemologies; and the role of the musicologist in this process, in which the construction of historiographic narratives demand attention to the ideological and/or philosophical-structural of present-day pressures.  Finally, we would also like to discuss professionalization initiatives in musicological practice aiming at the surpassing of models, and how this would require critical acuity and ethical positioning as we face contemporary challenges.