Última alteração: 2023-10-24
Resumo
Ao mesmo tempo em que se multiplicam no cenário brasileiro as reflexões sobre hegemonias musicais, observa-se a manutenção simbólica de referências à música de concerto, que muito antes de se constituírem como "universais" representam a apropriação de um universalismo atribuído à música erudita europeia. Neste sentido, um 'falso universalismo' (APPADURAI, 2018) se torna objeto de negociação. Por um lado, ele parece legitimar a prática da música de concerto no Brasil e, por outro, estabelece embates políticos, sociais e estéticos, que analisamos em um estudo de caso sobre a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (XXX). Nossa escolha se baseia na representatividade da instituição no cenário brasileiro (FISHER, 2012),[1] que se estende por décadas de atuação, incluindo diferentes formas de gestão e a oferta considerável de concertos e atividades didáticas.
Historicamente, a ideia de um universalismo musical é iluminista, e é descrita no próprio contexto da disciplina musical por Forkel (1788), que a afirma como uma Universalsprache [língua universal]. A ideia se difunde através da literatura, algumas décadas depois atravessa o Atlântico e pode ser encontrada na obra de Longfellow (1835). Siegel (1972) também descreve o papel da filosofia do período romântico alemão para a expansão de um ideal universalista da música – o que certamente fortalece a associação entre a música de concerto europeia e a fabricação de uma música universal. No entanto, ao ser pensada na contemporaneidade, esta associação envolve negociações sociais, políticas e estéticas, que desconstroem o universalismo frente à multiplicidade cultural das expressões musicais. A reflexão sobre a pluralidade da teoria musical, proposta por Christensen (2018, p. 15–21), que se expressa de forma multifacetada, a partir de intensos fluxos culturais vai de encontro à apropriação de uma música supostamente universal. Também Dave descreve a tentativa de pertencimento a um "fenômeno universal", a exemplo da música erudita europeia, como fonte de mal-entendidos na esfera social. Sobretudo no que diz respeito aos direitos humanos, a autora descreve uma oposição entre práticas musicais e políticas públicas de acesso igualitário e livre à cultura (DAVE, 2014).
O caráter histórico do conceito de universalismo musical atua de forma determinante em sua apropriação pelo contexto brasileiro contemporâneo, como analisamos em um trabalho anterior (XXX). Nosso estudo sobre a OSESP aponta para o aspecto político de uma afiliação ao discurso universalista, como reforça Menezes ao esclarecer o Art. 18 da Lei Rouanet como forma de privilégio à música erudita, pela garantia de cem por cento de renúncia às contribuições tributárias para a área (2016, p. 44).[2] Em 2005, a gestão da OSESP como fundação sem fins lucrativos determinou situações de estreita negociação com empresas e possíveis financiadores (PECI; OQUENDO; MENDONÇA, 2020). Naturalmente, a relação entre lucro e propaganda se associou à imagem da música orquestral, e em uma esfera social, ela passou também a representar um público consumidor bastante específico. Teperman (2018) relata a histórica associação entre a elite paulista e a música de concerto, que se atualiza na inauguração da Sala São Paulo e nas referências simbólicas de sua arquitetura. Assim, observamos a constante necessidade de negociação entre uma imagem "universal" da música de concerto e as disputas que a mesma causa em um contexto brasileiro, onde afiliações políticas, sociais e estéticas se misturam à prática musical, determinando-a de forma direta.
[1] "E todas as outras instituições culturais em ascensão no Brasil tem seguido a liderança da Osesp" (FISHER, 20 de abril, 2012, tradução nossa). "And every other rising cultural institution in Brazil has been following OSESP’s lead" (FISHER, 20 de abril, 2012).
[2] Este dado se refere ao período de 2010 a 2014. Menezes atuou como Secretário de Fomento e Incentivo à Cultura entre janeiro de 2010 e dezembro de 2013.