Portal de Eventos Científicos em Música, 4º Congresso da ABMUS

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Por uma Musicologia Cultural
Carlos Ernest Dias

Última alteração: 2023-11-03

Resumo


No período de 2013 a 2017 realizei meu doutoramento pelo PPGMUS da UFMG, quando empreendi uma pesquisa sobre o modernismo musical brasileiro. Uma das principais interrogações que possuía na época era entender como havia se formado o nosso “paradoxal” modernismo-folclorista. Logo ficou claro para mim de que utilizando apenas as ferramentas musicológicas não seria possível alcançar essa compreensão, pois para entender o modernismo e o folclorismo era preciso enveredar por outros campos do conhecimento, investigando o tecido histórico e sociocultural em que se realizam as práticas musicais. Dessa forma, procurando escapar do viés internalista com que normalmente a Musicologia analisa o objeto musical, desenvolvi análises interdisciplinares sobre as práticas musicais brasileiras no século XX, aproximando a Musicologia dos campos da História, da Literatura, das Ciências Sociais e dos Estudos Culturais.

Percorrendo essas trilhas, a pesquisa verificou a existência de uma vasta produção de artigos, dissertações, teses e livros de diferentes autores e autoras que antes de mim já anunciavam a necessidade que se coloca para a Musicologia de se aproximar dos debates empreendidos pelas ciências sociais sobre a realidade brasileira. E outras que apontam também a necessidade de serem revistos ou atualizados os procedimentos metodológicos sobre aquilo que se conhece e se conta como “História da Música”.[i] E aqueles que nos relembram de músicos importantes silenciados pela história oficial.[ii] Marcada por valores positivistas e distante dos debates socioculturais e sociopolíticos inerentes à vida humana numa sociedade moderna, a tradicional “História da Música”, baseada em “vultos históricos”, “pontos nodais” gênios, mitos e instrumentistas virtuosos dificilmente se sustentará num mundo cada vez mais tecnológico e globalizado e ao mesmo tempo interétnico e intercultural.

Constituindo-se numa das forças conservadoras mais fortes e penetrantes da sociedade brasileira, os ideais positivistas, não promovendo a reflexão sobre os próprios conceitos e práticas, permeiam grande parte do ambiente do ensino oficial de música no país. A formação de instrumentistas por esse viés “prático” e pouco reflexivo dificulta a aproximação da musicologia aos outros campos, fato confirmado por Diósnio Machado Neto:

"A música foi incorporada na universidade, como clamava Mário de Andrade, porém a força da mentalidade do ensino prático acabou, como uma ironia ao mentor que a idealizou, adaptando a própria musicologia às suas necessidades, distanciando-a das questões conceituais que se desenvolvem diuturnamente nas outras áreas das ciências humanas."[iii]

Consideramos de grande importância que a Musicologia se aproxime da História Cultural, a qual já foi entendida como “história total”, “história das ideias”, “história das mentalidades” e como “Nova História”. Na mesma direção, defendemos a adoção de uma vertente que poderíamos chamar de Musicologia Cultural. Esta tendência colocaria a Musicologia mais em contato não apenas com os estudos sobre a Cultura, mas também com as ciências humanas, abrindo uma importante vertente interdisciplinar de análises sobre as práticas musicais brasileiras, sejam as populares ou as de concerto. A partir de meados da década de 1980, a musicologia internacional, impulsionada por Joseph Kerman, se preocupou em desenvolver um viés mais crítico da disciplina, alinhando-se ao escopo da crítica literária. Teríamos, então, analogamente ao que se passou na História, e para além do que o musicólogo inglês chamou de “musicologia crítica”, o advento de uma “nova musicologia” ou, para usar o termo em inglês, new musicology. Para Maria Alice Volpe, não há uma fronteira rígida entre o que seria musicologia cultural ou nova musicologia:

"Pode-se dizer que o que diferencia a 'nova Musicologia' da 'musicologia cultural' é que a primeira tem uma postura polêmica questionadora, e se apega muito à crítica ideológica e à desconstrução do discurso historiográfico, enquanto a segunda tem uma preocupação pelo cultural, pelo contexto como elemento fundamental para a compreensão da música, o que muitas vezes resulta numa crítica revisionista, sem necessariamente abandonar os métodos tradicionais da musicologia."[iv]

Do ponto de vista do desenvolvimento de uma musicologia brasileira, penso ser válido conhecer a história da musicologia em nosso próprio país numa perspectiva crítica, histórica e cultural. É o que indica a historiadora Carla Bromberg, para quem os estudos históricos são altamente necessários à formação de um músico ou de um musicólogo:

"Os estudos históricos, em teoria deveriam pertencer ao quadro curricular da musicologia, que basicamente existe no Brasil nos cursos de pós-graduação. Contudo, a estrutura curricular, longe de dirigir-se às discussões metodológicas e epistemológicas da musicologia e de sua história permanece atada à estrutura da área a qual ela pertence, a Música, que visa à formação do músico prático, regente ou compositor. Primeiro esquivando-se de disciplinas, e até da história da musicologia, formando gerações, que no mínimo desconhecem a origem da ciência na qual se especializam."[v]

Nesse sentido, faz-se necessário que nossos estudantes conheçam e desenvolvam um viés crítico não apenas sobre a produção de musicólogos “históricos” como Luiz Heitor, Mário de Andrade e Renato Almeida, mas também dos acadêmicos acima citados, e dos não acadêmicos Almirante, Marisa Lira, José Ramos Tinhorão e Sérgio Cabral. E logicamente os interdisciplinares Heloísa Starling, Arnaldo Contier, José Miguel Wisnik, Marcos Napolitano, José Geraldo Vinci de Moraes, Cacá Machado, Avelino Romero Pereira, Antônio José Augusto e Vanda Freire, entre diversos outros e outras, que não sendo músicos ou musicólogos de ofício, contribuem imensamente para a nossa área. Só conhecendo nossa própria experiência, nossa própria cultura e refletindo sobre nosso ser-estar no mundo poderemos amadurecer intelectualmente e avançar no sentido de construir uma historiografia que nos permita compreender e registrar as múltiplas, diversas, interétnicas, interculturais e intergeracionais práticas musicais brasileiras.

[i] FREIRE, Vanda Lima Bellard. A História da Música em Questão: Uma Reflexão Metodológica. In: Revista Música, São Paulo, v. 5, n. 2: 152·170, nov. 1994.

[ii] AUGUSTO, Antônio J. Da pérola mais luminosa à poeira do esquecimento: a trajetória de Henrique Alves de Mesquita, músico do Império de Santa Cruz. In: LOPES, Antonio Herculano (Org.). Música e História no longo século XIX. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2011, p. 421-450.

[iii] MACHADO NETO, Diósnio. Unita Multiplex: por uma musicologia integrada. In: Anais... VII Seminário de Pesquisa em Música da Universidade Federal de Goiás, 2007.

[iv] VOLPE, Maria Alice. Por uma nova musicologia. In: Música em Contexto. Revista do Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade de Brasília. Ano 1, n. 1, set. 2007.

[v] BROMBERG, Carla. Histórias da Música no Brasil e Musicologia: Uma Leitura Preliminar. In: Música e Artes. Projeto História n. 43, pp. 416-444, dez. 2011.


Palavras-chave


Historiografia da música; estudos e práticas culturais